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Carlos Faria e eu

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A publicação desta texto na altura em que foi concebido foi acicatada pela tremenda ansiedade, mais do que de dá-lo à leitura, de escrevê-lo. O meu amigo Carlos Faria havia falecido há pouco e os sentimentos de amizade e admiração que me haviam aproximado dele no fim dos anos sessenta fizeram que, com a cumplicidade de seu filho Carlos Nuno Faria, num ápice, tenha confeccionado uma autêntica plataforma de evocação e de reencontro com o nosso grande amigo, com várias páginas. Fujo aqui, como é evidente, às palavras pesadas da consagração sacramental que o próprio Carlos Faria evidentemente dispensaria.
Escrevi tudo de um folgo e publiquei logo em Janeiro de 2010.

Costa Brites

A passagem do tempo foi solicitando uma revisão do que foi inicialmente escrito, valorizando o conteúdo na medida do possível com o recurso a documentos vários que fui pesquisando e lendo. Não vou tirar a este trabalho o carácter de uma abordagem subjectiva e, como não estou matriculado em mestrado nem tenho tese para defender, irei fazendo as referências que me forem vindo à memória e melhor se enquadrem na minha sensibilidade, dando um depoimento animado pelo profunda consideração e amizade que me ligou ao Carlos Faria, ao Rogério Silva e ainda a outras figuras muitíssimo valiosas para a cultura dos Açores que tive o elevadíssimo privilégio de conhecer.
Carlos Faria, terei que dizê-lo em primeiro lugar, foi uma pessoa muito importante para mim pelo impulso inicial em direcção ao exercício das artes e da intervenção crítica, sobretudo pelo jornalismo cultural, que configuraram a maneira de me relacionar com o mundo e ilustrar a vida. Já antes de ir para os Açores e desde a adolescência que escrevera para jornais. Nos Açores colaborei com vários periódicos, incluindo “A União” e no próprio suplemento Glacial de que aqui irei falar também, por ter sido uma das mais fortes áreas de actividade artística e cultural de Carlos Faria no arquipélago.

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As fantasmagorias da guerra, desenhados a nanquim, aguarelas e marcadores; desenho de 1971, plenamente integrado no espírito Gávea, pelo menos no que me tocou a mim. Observo paralelamente que a temática aqui abordada mantém a sua actualidade, milhares de anos e milhões de vítimas depois!…

Leiria, o começo

(em casa de Augusto Mota)

Não estou bem certo de qual foi a data em que primeiro conheci e conversei com Carlos Patrício Barata Faria (um nome que dizia detestar, acrescentando muitas vezes, com a sua imensa graça que tinha um nome no condicional!…). Mas foi certamente entre 1967 e 1968.
O nosso encontro deu-se em casa dos meus amigos Margarida e Augusto Mota e o Carlos tinha ido a Leiria (qualquer coisa de camaradagens de teatro que além da peça que fomos ver envolvia um convívio que se relacionava com o actor e encenador Quiné, das Caldas da Rainha, que residia em Leiria).
O convívio com o Carlos teve aquele carácter das coisas que se deixam para contar mais tarde e que transportam consigo odor de entusiasmo, filho legítimo do gosto de viver. O episódio deu para saborear a alegria vital que marcava a fundo o carácter do convidado dos meus amigos na sua casa da Avenida dos Combatentes, em Leiria.

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Eu e Maria da Conceição, a noiva que cá deixei na condição de vir ter comigo aos Açores, em Agosto de 1968. Só esperou um mês, se bem me lembro. Cinquenta anos depois e muitos trabalhos passados, ainda namoramos…

Partida para os Açores

Tendo eu os meus vinte e seis anos já há muito tempo que trabalhava e, por voltas que a vida dá, vi-me um dia a embarcar para os Açores num vapor daqueles a sério, para ir começar uma coisa que não me entusiasmava nada: ser funcionário do Banco de Portugal em Ponta Delgada. Quando subia as escadas do portaló – oh! deuses da casualidade – lá estava o Carlos Faria também a embarcar no mesmo navio (o Angra, ou “João dos ovos”, como era alcunhado pela gente das Ilhas!…)
Com passagem pelo Funchal a viagem penso ter durado entre três e quatro dias e, nas primeiras horas de navegação não me atrevi a ir ter com aquele precário conhecido de um serão de entusiasmos e surpresas inauditas.
Quando por fim me decidi a falar-lhe quase me ralhou por ter hesitado, ele, que nem sequer me reconhecera. Estava, sem saber, a traçar directivas de vida que iriam durar muito, pela força de coisas inexplicáveis.
Permaneci quase três anos em Ponta Delgada, para onde casara de fresco com a minha companheira de todo o sempre, Maria da Conceição.
As visitas de Carlos Faria passaram a ser durante a nossa estadia ali um hábito normal, cheio dos entusiasmos que fazem da amizade o que ela é, ou seja, um combustível que ajuda a manter vivas as pessoas no verdadeiro sentido do termo.
Posso afirmar que sempre gostou de nós – e não era parco em dizê-lo. Obsequivamo-lo o melhor que podíamos e de forma tão íntima que se movimentava na nossa cozinha com o mesmo à-vontade com que noutras situações do convívio e da amizade, colaborando activa e alegremente na culinária, comendo à mesa mesmo ali, sem termos de pôr a mesa com cerimónia, na sala. O apetite de Carlos era esplêndido e correspondia ao perfil de um levantador de pesos e halteres. Dos belíssimos lacticínios açorianos, comprávamos directamente da fábrica um queijo delicioso. À sobremesa eu olhava e o Carlos comia… um queijo Serrano inteiro!…
Não houve vez nenhuma que nos visitasse que não trouxesse consigo uma qualquer lembrança, por mais simples, para oferecer à São, minha mulher. A convivência comigo jogava noutra divisão e incluía uma série indescritível de novidades no meu viver que me talharam naquilo que eu passei a ser desde esse momento.

Um desenho meu originalmente a nanquim e Flo-Master, feito no regresso dos Açores e datado mais tarde só para figurar numa exposição em Leiria

Um desenho meu originalmente a nanquim e Flo-Master, feito no regresso dos Açores e datado mais tarde só para figurar numa exposição em Leiria

Em termos de trabalho eu vinha do Continente cansado de uma vida tremendamente trabalhosa e cheia de sensações fortes; depois de um Curso Geral de Comércio e de um sétimo ano tirado a trabalhar em Leiria e de um tremendo serviço militar que durou trinta e seis meses, tive talentos que me guindaram à categoria profissional de guia-intérprete de turismo, tradutor e correspondente em línguas estrangeiras.
Entrar para o Banco, com horário fixo das 10 horas (em que nesse tempo abriam os bancos!…) e saída às seis da tarde, senti-me como se estivesse em verdadeiro gozo de férias. Umas extravagantes duas horas para almoço davam para tudo, até para ir à “piscina do calhau”, um lugar onde me encontrei muitas vezes e tomei banho no mar com o Carlos Faria, Tomaz Vieira e outros amigos a que o Carlos lestamente me ia apresentando.

Carlos Faria, um caso de vitalidade desbordante

 A minha ida para os Açores trouxe-me um seriíssimo problema de saúde pelo estímulo excessivo do clima do alto mar. Durante o meu tempo de Açores dispus, por isso, de uma espécie de “alter ego” com características diferentes das que me são próprias e muito mais energia disponível. O pior foram as consequências que disso retirei depois de ter regressado ao continente.
Julgo que com Carlos Faria isso também acontecia, embora nunca chegasse, com o organismo que possuía, a experimentar o desgaste subsequente. Muitos foram os comentário feitos à imensa disponibilidade energética que lhe transmitiam as suas idas aos Açores. Desde logo, como todas as pessoas muito fortes, não compreendia o queixume dos mais débeis, que era o meu caso.
– Eh pá, para queimar o meu excesso de energias era capaz de andar aí a subir e a descer escadas com um saco de cinquenta Kg em cada mão!…
Carlos Faria andava perto dos 100 Kg quando o conheci e eu nunca chegava aos 60.
Essa vitalidade conferia-lhe, além de disponibilidade para as mais diversas actividades, uma atitude energética que transbordava vigor, alegria e entusiasmo. O Carlos Faria era dos que “levava tudo à frente”, tinha sempre ideias, estava sempre alegremente disposto e os tempos de estadia nos Açores, que tinham a duração de poucos dias, davam-lhe tempo de sobra para fazer tudo o que mais lhe agradava.
Julgo que a brevidade das suas estadias também ajudavam a entender isso que chamo “alter-ego” prodigioso e entusiástico.
Se o Carlos Faria tivesse que viver continuamente nos Açores tudo iria ser diferente, porque ficava a faltar-lhe o estímulo da viagem, das chegadas e partidas e esse sentimento prodigioso de alguém que está sempre em movimento, em devir mágico, em carga máxima de novidade e sensação, que não se cansa porque goza do reforço da rapidez e do inesperado.
Ir à piscina, serões prolongados, concertos no Teatro Micaelense, passeios a pé por Ponta Delgada chovesse ou fizesse sol, enfim.

Banco de jardim no campo de São Francisco onde se suicidou Antero de Quental e túmulo no cemitério de Ponta Delgada (Imagens vistas em http://asilhasencantadas.blogspot.pt/ )

Banco de jardim no campo de São Francisco onde se suicidou Antero de Quental e túmulo no cemitério de Ponta Delgada ( mosaico composto de imagens vistas em http://asilhasencantadas.blogspot.pt/ )

Numa tarde de chuva lembro-me de ter andado por Ponta Delgada, com ele e o Dias de Melo, a toque de caixa, em romagem de saudade pelos lugares registados da memória de Antero. O local onde se suicidou, no campo de São Francisco, num banco assinalado por cima com uma âncora, e o túmulo no cemitério, um pouco mais acima seguindo pela Rua Coronel Silva Leal. Não, não me recordava nada deste nome e não seria capaz de fazer esta menção se não fossem os novos recursos da internet.
Carlos Faria dinamizava sempre vivências, procurando geralmente o contacto com pessoas ligadas à cultura e às artes. Passávamos por casa do escritor Armando Cortes-Rodrigues, visitávamos o poeta Jacinto Soares de Albergaria e outras notabilidades culturais de Ponta Delgada entre as quais a mais destacada era sempre o escultor Canto da Maia. Sempre que passávamos pelo Museu Soares Machado era obrigatório entrar e falar com alguém.
Como detestava andar sozinho e apreciava a minha disponibilidade, quando estava em Ponta Delgada encontrávamo-nos sempre.
Como eu não era pessoa de destaque e os meus curricula estavam todos na hora zero, umas vezes apresentava-me como pintor, outras vezes como jornalista. Dependia do interlocutor ou da inspiração momentânea…
Com o Carlos Faria, aliás, aconteciam sempre coisas… Um serão depois de jantar num restaurante da cidade iniciámos conversa com o próprio cônsul do Canadá, que devia estar temporariamente só na sua belíssima casa perto da Praça de Ponta Delgada e nos obsequiou com bebidas, conversas sobre o largo mundo e viagens. Quando detalhou as nossas ocupações o Carlos disparou muito prontamente “…my friend writes novels…”, tendo eu que fazer certo esforço para manter a naturalidade.

Os pseudónimos qualitativos de Carlos Faria

Nesse tempo o Carlos reservava para si uma série de qualificativos que chegava para uma tribo completa de intelectuais alucinados. Poeta pânico e vendedor de drogas, marinheiro bêbado e anarquista, agitador pânico-cultural, décimo primeiro secretário do PPM, por exemplo, entre variedade de outras que agora não me vêm à memória.
Esse pânico derivava de uma paixão poético-política pela obra de Fernando Arrabal, cujas frases repetia por aqui e por ali, usando da fresca memória de que se valia o seu enorme gosto por intervir publicamente em eventos culturais. A certa altura do discurso lá saltava uma citação ao vivo, uma poesia decorada e entoada a preceito, algo que geralmente coroava de vibração as palavras sentidas.

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Usava papel de carta especificamente preparado numa tipografia em papel de cor pânica, magenta carregado, com a palavra “pânico” repetida de cima abaixo do lado esquerdo da folha, nas quais inscreveu alguns poemas que me dedicou, tendo assinado com mais um dos seus “pseudónimos qualificativos” que não deixa margem para dúvidas: “Karlos Faria, cabrão de fogo”, assinado de S. Jorge, mas oferecido num fim de tarde emocionante de deambulações por Ponta Delgada. Já na residencial onde pernoitava, em voz audível, invectivava a mediocridade reinante repetindo que “isto só vai à bomba” e “Portugal é uma nódoa que só sai com ácido”!…
Recém chegado de um país onde estas coisas só se diziam aos amigos bem conhecidos e em voz baixa, podia ter tido receio e desconfiar até daquilo que costumava ser uma prática de provocadores e gentalha que tentava “fazer a folha” a novatos ou incautos.
Mas não, cedo me certifiquei que estas frases tonitruantes, no Carlos Faria, nunca passavam de uma retórica e impossível violência. Era muito cuidadoso, propagandista e praticante da “condução defensiva” e as suas provocações não passavam de alegres bandeirolas festivas suspensas na praça do entendimento crítico.
A propósito de se intitular o 11º secretário do PPM, ocorre-me citar o seu percurso de ideologia política, aparentemente contraditório mas perfeitamente compatível com a imaginação poética que levava sempre a melhor sobre todas as suas coisas.
Numa das suas visitas a Coimbra, muito mais tarde, contou-nos no seu tom habitual que fora participar num congresso do PPM. Um dos pontos altos da sua presença tinha sido o momento em que inscrevera em letras garrafais no placard onde as pessoas registavam as suas impressões: ABAIXO O PPM!..
O seu entusiasmo por certas ideias ficava-se sempre pela leitura mesclada de sentimento poético, nada mais. A opção pela monarquia passava por uma defesa da “nobreza do sangue”, da dignidade cultural e da tradição de altas virtudes, apenas tolerável para ele se lhe fosse possível ir a um Congresso mandar abaixo o partido propriamente dito!..

Lorca e outras Espanhas

Federico Garcia Lorca era um de muitos poetas e artistas que pertenciam à colecção de textos decorados de Carlos Faria.
Não vou conseguir referir por palavras ditas o manancial de marcos que estão colocados no meu caminho e que passei a passo lesto, lado a lado com Carlos Faria. A minha memória está para a de Carlos Faria na proporção directa das nossas estaturas físicas: ele um Hércules Viking nascido na Golegã e filho de um campino e eu um trinca-espinhas que demorei sessenta anos para passar dos sessenta quilos. Uma outra insignificância que nos diferenciava era de eu ser menino de copo de leite e ele campeão nacional de pesos e halteres (ignoro completamente em que categoria). Mas, à fé de quem sou, marcava-me tão a fogo aquela agilidade de citar de memória certos escritos e fraseados, que coloquei na mesinha de cabeceira das minhas mais ansiadas pretensões saber também coisas de cor para dizer se fosse preciso.
Comprei o “Romancero gitano” de Lorca, coisas de Natália Correia, Camões, além de outras…Roubei algum tempo à pintura na (tentativa de) emulação dessa risonha mas compenetrada vaidade poética de Carlos de coroar de flores os momentos solenes de discurso público ou privado, fosse à mesa ou numa sala de exposições!…
Não posso dizer que tenha sido em vão, mas para lá caminha. A minha retentiva é curta como a espessura dos meus bíceps envergonhadamente esquálidos.

Martin Vincente Lezaola

Don Martin foi outra das muitas pessoas que me apresentou Carlos Faria e, invariavelmente, sempre se juntava a nós no convívio saborosamente urbano dessa terra de sol e chuva que é Ponta Delgada.
Trabalhei no Banco de Portugal em várias coisas de que não vale a pena falar. Nas Informações de clientes havia um caso que tenho pena não ter fotocopiado (nesse tempo, algo da ficção científica) a ficha de um residente em Ponta Delgada que era cidadão Basco, com marca registada e coração escaldante.
Tinha sido capitão no exército vermelho da República, fugira exilado para o México e, sei lá bem como, desembarcou um dia em São Miguel, Açores, onde vivia à espera dos seus últimos dias.
Voltando à célebre ficha de informação de cliente rezava assim: Martin Vincente Lezaola, cidadão tal assim assim; classificação estatística: “proprietário e capitalista”.
Na primeira linha da primeira informação (um autêntico segredo de Polichinelo) estava escrito, a vermelho: “É comunista”!…
Usava boina Basca como manda a tradição e trazia de baixo do braço, como uma bíblia, um exemplar de “El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de La Mancha”.
Em menino, quando dormia a sesta infantil, usava minha extremosa Mãe ler-me capítulo após capítulo uma versão de que me não recordo da obra de Cervantes, do que ela chamava com certo orgulho e sentido de tutela pedagógica: “O Dom Quixote”!… Eu tinha medo, condoía-me com os desastres do fidalgo desastrado e… ria-me imenso com as passagens “alegres”, até que o anjo do sono cerrava as minhas pálpebras cansadas de sonhar!…
O Dom Quixote do Señor Don Martin e do Carlos Faria não era o mesmo que me tinha visitado em criança…
Talvez porque eu entretanto já fora inoculado com uma série de imaginários que coleccionara pelo caminho, entre a edição em Francês com ilustrações de Gustave Doré e a sumptuosa solenidade cinematográfica de um dos raros, senão o único filme feito na Rússia soviética que furou os bloqueios da censura fascistóide do regime, o Dom Quixote de Gregori Kosintsev, de 1957.
Um belo Domingo de manhã abençoado pelo caprichoso sol da Macaronésia cruzei-me com o Señor Don Martin, que trazia debaixo do braço o seu indispensável livro de capa negra: “El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de La Mancha”. Para espanto e orgulho da minha alma ofereceu-mo por empréstimo, para que o lesse.
Tive medo, condoí-me com os desastres do fidalgo desastrado e… ri-me imenso com as passagens “alegres”, tal como numa cama de sesta infantil de que bem me recordo, ao calor estival de Leiria, na “Rua do Largo de Camões”, mesmo ao lado do Liceu.

Rogério Silva

A figura de Rogério Silva não podia faltar a esta série de narrativas entrelaçadas. Carlos Faria também era “contrabandista” de obras de arte entre o continente e as Ilhas de Baixo, principalmente.
O Rogério Silva era um compenetrado maníaco da expansão do encantado mundo das artes. Juntos formavam uma dupla sem igual que, sem subsídios de ninguém, pouquíssimos apoios jornalísticos e não poucas invejas paroquial-insulares, conseguiram por esses anos transformar a cidade de Angra do Heroísmo numa coisa fora de todas as congeminações possíveis do nosso pequeno mundo: Angra do Heroísmo, a segunda cidade no país na promoção das artes plásticas!…
Ninguém vai tirar a limpo esta asserção, que era feita à boca cheia pelo Carlos Faria, mas também a convicção entusiástica de ser verdade autêntica não é menor por isso.

1998 Velas – Encontro de Escritores – adro da igreja. Artur Goulart, Carlos Faria, Eduardo Bettencourt Pinto, Vamberto Freitas e Maria Aurora Homem

A”Gávea” – galeria açoriana de arte não comercial, função didática e cultural

Esse “célebre contrabando” processava-se mais ou menos assim: Carlos Faria, frequentador de tudo quanto era convívio e acontecimento artístico cultural no Continente, falava com as pessoas e dispensava-lhe aquela desvelada atenção de que carece todo e qualquer artista. Fazia depois um amável cerco de entusiasmo a cada um desses mesmos artistas e, na própria sala da galeria ou na confidencialidade do atelier “apropriava-se” por empréstimo magnânimo, de uma pastola de trabalhos, estudos, projectos ou telas engradadas.
Passadas essas coisas à tolerância dos frequentes “check-ins” e entradas e saídas em vapores ) era simples: lá estava o Rogério Silva à espera para fazer o resto de tudo o que era principal no trabalho de expor, divulgar e mostrar a toda a gente, com orgulho de galerista e promotor cultural imbuído de espírito de missão e destino avesso a todo e qualquer mercantilismo. A propósito de direitos alfandegários: nessa época, os cidadãos “nacionais” do continente tinham que passar por uma alfandega para entrar nos Açores e pagar – como foi o meu caso – pesadíssima alcavala pelas próprias roupas usadas!…
O Carlos Faria era o agitador impante de entusiasmo que contava os episódios, dava eco às opiniões, pormenorizava os talentos, elogiava os dons, vaticinava sucessos! O Rogério Silva era o obreiro diligente, o espírito silencioso, pertinaz e cheio de convicções.
Ambos, eram uma dupla imbatível!…
Rogério Silva era um cidadão devotado em extremo às artes que “não sabia” fazer a barba (eu sou testemunha porque ainda lha fiz algumas vezes quando esteve em nossa casa) que acreditava em tudo o que lhe segredava a alma em cumplicidades de natureza sócio-pedagógico-artístico-cultural!…
Li há tempos (ou sonhei) que se ia formar (ou já existe) nos Açores uma obra qualquer que lhe fora dedicada, estilo museu. Se assim não é, devia sê-lo. Para que conste, tenho em meu poder uma coisa tremendamente rara que é uma colecção praticamente completa das realizações da Galeria de Arte Gávea que me foi dada pelo próprio Rogério Silva na minha casa de Coimbra, lá pelos idos de 1978!…
Tenho a honra inapagável de ter sido colaborador da mesma, mentor e apoiante da Galeria de Arte Gávea em Ponta Delgada (Oh pardo anjo da vaidade!…), tendo sido a Gávea de Angra a primeira galeria do mundo a mostrar trabalhos meus.

Obras aqui reproduzidas:

Uma das marcas indeléveis da influência artística e magnânima que sofri da parte de Carlos Faria e do nosso comum amigo e grande dinamizador cultural, o pintor Rogério Silva, era de que a Arte é uma coisa para dar!…
Os trabalhos que fiz nos Açores ao longo de uma cavalgada de entusiasmos sem nome foram todos deixados por lá, oferecidos, eu sei lá!… Poucos trabalhos devem ter escapado, alguns foram destruídas por motivos íntimos, em momentos de certo desânimo. Alguns dos que publico e que foram produzidos ainda nos Açores ou pouco depois, foram assinados mais tarde de forma ainda vacilante por alguém que achava as assinaturas coisa de somenos, essencialmente egocêntrica.
Isso traduz bem o espírito que vibrava em mim na produção feita durante o começo “acidental” de vida artística, na Ilha de São Miguel, algures no tempo que medeia entre 1968 e 1971!…

“Sísifo” – Homenagem a António Sérgio, nanquim e acrílicas s/ papel, Costa Brites – Ponta Delgada 1969; pequena foto a preto e branco com ligeito reforço cromático a “photoshop”

O Carlos Faria, num encontro que tivemos já em Lisboa logo depois do meu regresso ao continente, entregou-me um envelope com pequenas fotografias a preto e branco de trabalhos meus da época dos Açores. Tinham sido feitas com muito afecto mas com escassíssima técnica. Passo por elas sempre com um certo desconforto, dado que – a serem utilizadas agora – teriam de passar por um tratamento muito especial, ou na falta dele, pela reexecução pura e simples, o que está perfeitamente ao meu alcance. A foto acima é uma dessas relíquias (não assinada, como era timbre…), com uma ajudinha de “photoshop” para facilitar a sua leitura e representa a obra nº 2 da exposição de Ponta Delgada (“Sísifo” – Homenagem a António Sérgio). De facto, admirador muito empenhado de António Sérgio, depois de ver o trabalho, achei bem pensada a figura mitológica para evocar os seus esforços de autêntico Sísifo. Educar e ajudar os portugueses a “cooperarem” uns com os outros, foi, é e será trabalho para muitos Sísifos e sei lá por quantos séculos!… .

O artista Tomaz Vieira

Um notabilíssimo retrato de José Dias de Melo, assinado por Tomaz Vieira em 1974 (1000 x 810 mm)

Entre muitas outras pessoas presentes no acto de inauguração da minha exposição em Ponta Delgada esteve uma, enorme artista que mereceria um capítulo inteiro deste pequeno registo de recordações, e que foi até mim, da altitude da sua condição artístico-académica, levar-me o apoio de uma presença larga como a baía que se estende frente daquela cidade.
Tomaz Vieira foi um dos numerosos amigos que o Carlos Faria fizera o favor de me apresentar, obediente ao impulso de construir pontes entre as pessoas.
O artista ofereceu-me, enquanto tive o privilégio de desfrutar em Ponta Delgada do seu convívio, uma valiosa e rara atenção. Recebia-me no seu atelier, descrevia-me conceitos de construção estética, mostrava-me soluções práticas, técnicas e materiais de execução e exercitava a maturidade dos seus conceitos de apreciação crítica, numa demonstração daquela generosidade comunicatica que é exclusivo das almas muito raras, nobres e especialmente dotadas.
Quando as determinações da vida me fizeram sair de São Miguel, tive a noção clara de que, para além da grande qualidade do seu convívio pessoal perdia também a generosidade raríssima da disponibilidade de um mestre no verdadeiro sentido da palavra.
Esta obra de Tomaz Vieira foi-me dada a conhecer no magnífico catálogo da sua grande exposição de 1996, que teve a grande amabilidade de me oferecer:

Agora entra de novo o Karlos Faria

Carlos Faria também tinha a paixão (inevitável…) do Teatro!…
Como tinha projectos para peças de teatro leu-me um dia num restaurante tardio em Ponta Delgada um largo pedaço dum desses projectos que era, já não me lembro o nome, pânico-anarquista!…
Fui para casa a flutuar sobre brasas e, no Sábado seguinte, entre mimos de recentes esponsais, sentei-me à secretária do espaçoso quarto em casa da Dona Béquinha na Rua da Boa Vista (onde estivémos hospedados nos primeiros meses de Ponta Delgada) com um maço de papéis e esferográficas de várias cores. Dediquei-me a fazer várias ilustrações para a sobredita peça de teatro pânico-anarquista do Karlos Faria, e outra não podia ser a assinatura do dramaturgo assim auto-designado .
Uma das tais pequenas fotografias a preto e branco que Carlos Faria me ofereceu e de que já falei acima revela, de forma pouco demonstrativa, o real aspecto do original a cores de esferográfica de um dos tais desenhos ilustrativos da peça anarquista de sua autoria:

O tempo passou entre idas e vindas de Carlos Faria às Ilhas de Baixo e ao Cont’nente e na próxima chegada lá estava eu de plantão com um envergonhado molho de papéis debaixo do braço, que passei para as mãos dele sem ter tido a atrevida pretensão de auscultar a opinião ou pedir críticas detalhadas.
Certo é que… passados uns tempos, estava eu a fazer a barba naquela “alegre casinha” que tínhamos alugado como noivos recém-casados e ia-me cortando ao ouvir as notícias da rádio do habitual “boletim noticioso” da manhã: “…em exposição de artes plásticas… não sei quê;  Teatro de Angra… não sei quê;  desenhos de Costa Brites…! Deve ser um primo meu desconhecido ou homónimo que tenho na Ilha Terceira, pensei.
Ponta Delgada naquele tempo era uma terra giríssima crivada daqueles rituais das cidades pequenas que julgam que são grandes, ou que são grandes a sério sem suspeitar que o são. Havia duas coisas que eram inevitáveis: ouvir a rádio de Santa Maria (O “Asas do Atlântico”, por causa do aeroporto) e assinar um dos prestigiados diários locais.
Naquele dia limitei-me a ouvir o noticiário e dei o último dos beijos de pequeno-almoço sem ter ido à caixa ver o infalível periódico de assinatura.
O Senhor Guilherme da Silveira Lemos, chefe de escritório no Banco de Portugal, às tantas, teve o seguinte desabafo com o rosto meio torcido de que não gostei lá grande coisa: “eles” bem andam por aí mas “a gente” não sabe de nada!…
Foi desse modo que fiquei conhecedor de que o tal Costa Brites era eu e os desenhos tal e tal eram as mesmíssimas ilustrações para a peça pânico-anarquista!…
Naquele tempo o Banco de Portugal tinha uma regra absolutamente inquebrantável: os funcionários de qualquer nível não podiam exercer cargos ou tomar atitudes públicas (ou privadas) que não fossem de conhecimento e autorização da Senhora Administração. Acabei por ser abordado pelo Senhor Agente Manuel Covas que era meu amigo devoto por interposta pessoa, com um sorriso amarelado, a chamar-me à pedra de modo muito delicado.
Como ainda vinha com odor de continental, como fora guia-intérprete em Lisboa (trabalho em que ganhava mais que no Banco) encolhi os ombros ao meu amigo Senhor Covas e lancei-lhe, sem qualquer bravata, de que não tinha a mínima intenção de respeitar essa bendita determinação.
(O nosso “fascismo” era pérfido como qualquer outro mas os Açores eram os Açores e a malta dos guardiões do regime, ao pé dos actuais Big Brothers, não passava de um bando de mandongos!…)
Eu continuei a ser falado nos noticiários da Rádio Asas do Atlântico” (por acaso até dei uma entrevista que irá ser referida neste e no site de Rogério Silva, por lhe dizer especialmente respeito) e o assunto do regulamento bancário ficou por aqui… até hoje!

Ivone Chinita e J. H. Santos Barros

Digo Fome, poemas de Ivone Chinita; primeiro número da colecção Gávea/Glacial, Angra do Heroísmo, 1970

Digo Fome, poemas de Ivone Chinita; primeiro número da colecção Gávea/Glacial, Angra do Heroísmo, 1970

A Ivone Chinita foi uma poetisa que surgiu do nada entre ventos suões da terra de Catarina Eufémia e neblinas açorianas. Por magias de camaradagem oceânica inventada e esporeada pelo Carlos Faria, filho de campino do Ribatejo, acabou por vir passar uns dias em nossa casa.
Trazia debaixo do braço o seu livro “Digo Fome”, uma obra que impressionou naqueles pedaços de terras entre mares, editado pela Galeria Gávea e apresentada aqui e ali, pelo Rogério e pelo Carlos (além de outros numerosos amigos, claro).

20 Anos de Literatura e Arte nos Açores, J.H. dos Santos Barros

Já depois do 25 de Abril, já casada com J. H. Santos Barros veio também de longada até nossa casa em Coimbra, em comunhão de esperanças e relatórios de confidências.
Nunca mais a vimos de perto, nós todos que a amamos de longe, por tragédia de viageiros ingénuos surpreendidos pela decisão apressada do destino.

restauro fotográfico feito por mim de uma fotografia estropiada do escritor e amigo José Henrique Santos Barros

 Dias de Melo

Cabe aqui referir com destaque ter sido José Dias de Melo uma das pessoas que Carlos Faria me apresentou e uma das quais com quem mais assiduamente convivi em Ponta Delgada. Guardo da sua pessoa como artista, como cidadão e como homem, e de sua esposa e família, uma recordação valiosíssima e imorredoira.

1998 Velas – Encontro de Escritores. À frente da esq. para a dir.: Dias de Melo, Carlos Faria, Madalena Ferin, Artur Goulart e Ermelindo Ávila

Dias de Melo, o imortal escritor da Calheta de Nesquim foi daqueles amigos que tive de começar a tratar por tu por influência do Carlos Faria. O Carlos era um sonhador de amizades francas que achava caricato tratar um amigo que não fosse por tu.
“Faças o que fizeres não é possível seres verdadeiramente amigo de alguém se não o tratares por tu”. O cerimonioso formalismo da nossa adorada língua de Camões tem esta diferença abissal que me faz invejar os espanhóis: onde eles vêm a franqueza do tu, nós retorcemo-nos na cortesia sem sentido duma equívoca terceira pessoa. (Agora, pior a emenda que o soneto, impera o “Vócês”). Obrigou-me, se assim se pode dizer, a tratá-lo a ele por tu, eu rapazi emigrado de Lisboas cheias de salamaleques e de alguma província recatada. Custou-me durante um quarto de hora e agora sou eu apóstolo dessa anónima religião de tratar toda a gente por tu.

À esquerda o pintor Rogério Silva, o escultor Ernesto do Canto da Maia, um senhor também amigo de Carlos Faria que era farmacêutico em Ponta Delgada, e eu mesmo que estou ao lado direito da imagem

Armando Côrtes-Rodrigues

Armando César Côrtes-Rodrigues

Armando César Côrtes-Rodrigues

Entre Carlos Faria, Dias de Melo, Ernesto do Canto da Maia, Tomaz Borba Vieira e tantas outras pessoas que não alcanço agora, começou quando cheguei a Ponta Delgada, no breve passar de trinta ou quarenta meses, a mais atraente cavalgada de relacionamentos humanos e culturais de que há em mim memória.
Há, entre todas as pessoas com quem mantive contactos pela mão de Carlos Faria, uma que quase menciono com o pudor sensato de alguém que nem Carlos Faria tratava por tu.
Vivi na mesma rua onde morava Armando Côrtes-Rodrigues nos seus últimos tempos, e tive o luxo sentimental e literário de ter estado com ele um número de vezes que não deve chegar ao dos dedos de uma mão. Lembro-me do inconfundível odor da casa, do metal com patine da voz, do cansaço, da tez do rosto e da serenidade das mãos do amigo dilecto de Fernando Pessoa (Alberto Caeiro), do “Grupo do Orpheu”, de “Quando o Mar galgou a terra”, mas não ouso dizer que fui mais do que um conhecido que morou a dois passos dessa referência açoriana endeusada por todos os seus alunos e citada com respeito em todos os livros.

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Carlos Faria na glória da poderosa juventude, aquela que passa depressa…

 Carlos Faria, provocador, impetuoso, galanteador…

A propósito de um dos seus mais notáveis resultados desportivos que está documentado na fotografia acima, mediante o qual se consagrou campeão nacional de pesos e halteres, numa acalorada troca de impressões em Ponta Delgada (fim dos anos sessenta), ouvi afirmar a Carlos Faria que o dopping que recomendava a todos os atletas era o da solidariedade fraterna:
No próprio dia em que batera este record havia doado sangue gratuitamente a uma senhora idosa que disso carecia!…
Dotado de uma força física fora do comum, Carlos Faria era por vezes um riacho de águas mansas, outras vezes uma torrente sem margens que causava embaraços à tibieza dos meus verdes anos
Uma das pessoas cuja identidade a minha memória não alcança e cuja personalidade Carlos Faria abordava com o habitual e caloroso entusiasmo era uma Senhora que fora de dúvida pertencia à aristocracia da Ilha de São Miguel.
A notoriedade da Senhora em causa metia mestrados em Nova York a respeito de pedagogia de arte infantil e coisas do género.
Numa recepção que deu a várias pessoas no seu palacete “en las afueras” de Ponta Delgada – lembro-me como se fosse hoje – apresentou a Senhora um conjunto de trabalhos de pintura que iriam fazer parte (ou tinham feito parte) de uma certa exposição individual de sua autoria. Lembro-me de ínfimos detalhes do que disse e dos trabalhos apresentados, mas uma das coisas que me atravanca a memória é o tratamento “cavalheiresco” que lhe dispensou o Carlos.
Foi coisa rara a corte que o Carlos Faria fez à Senhora.
Passados dias reencontrámos a Senhora no Museu… e lá vem a mesma cena, comigo de espectador tranquilo, na pele de quem fora mancebo algo tímido, mas já barbado e a quem o “belo sexo” nunca meteu o mínimo asco. O Carlos exercitava o ego viril a torto e a direito e a Senhora, muito arranjada mas já longe da meninice encaixava com donaire.

2021

Dos atrevimentos graciosos lembro-me também de ir com ele a casa de outra notabilidade de Ponta Delgada, neste caso um poeta com as veias quentes de sangue azulado daqueles com o cabelo branco, farto e muito bem cuidado como eu gostava de ter agora,
Foi-nos dada entrada em casa tendo sido amavelmente conduzidos ao “parlour” decorado como estava toda a casa com peças antigas em amabilidades de simetria, em tudo primorosas.
Enquanto esperávamos a vinda do Senhor Poeta o Carlos Faria deu-se tempo para retirar da propositada simetria uma dúzia de jarras e objectos decorativos que por aqui e por ali semeavam requinte em peanhas e prateleiras, tudo com o ar de galhofa que nos tirou a compostura para enfrentar friamente o poeta entre requintadamente parisiense e tardiamente parnasiano.

Esm

“Esmeralda é a pele da Ilha…” Carlos Faria (primeiro verso do livro).

A rápida intuição crítica e a coragem pública de Carlos Faria

Várias vezes visitámos artistas perante as suas respectivas obras. Ao fim de alguns instantes, enquanto eu ainda passeava os olhos por sobre detalhes deste ou daquele trabalho o juízo crítico de Carlos soltava-se como uma corrente de ar entre duas portas abertas de surpresa.
Certa vez veio ao conhecimento de Carlos o caso de um homem que exercia a profissão de pedreiro mas que era possuidor de uma natural propensão para o exercício da pintura.
Fomos visitá-lo na sua residência e os quadros alinhavam-se semeados de encontro às paredes numa desordem sem nexo.
Fiquei perplexo ao ver a rapidez com Carlos Faria principiou a ordenar os quadros, uns para um lado, outros para outro, dando início a uma instantânea viagem pelo interior das obras e do seu relativo interesse, tendo estabelecido uma hierarquia que, se não me pareceu condizente com uma visão que também havia proposto em reserva a mim mesmo, se me afigurou tão estética quanto era possível.
Independentemente das dúzias de coisas que eu próprio fiz nos inícios da aventura no domínio das artes visuais com o caloroso apoio de Carlos Faria, tenho que dizer que a amizade não lhe cerceava a franqueza e que – nos meus “passos incertos” dessa data – nada o inibia na sinceridade, que lhe era peculiar.
No sector que inseri há muito poucos anos na minha página Web que contém o conjunto de depoimentos que considero mais fortes e valiosos sobre a minha obra, aparece em primeiro lugar um texto de Carlos Faria, datado de 1969.

Sem qualquer desprimor para outros documentos ali presentes assinados por amigos com a mais elevada qualificação estético-crítica é aquele o texto que revela a mais denodada coragem cívica.
Cabe aqui lembrar que vivíamos em pleno fascismo, a guerra colonial estava no seu auge e qualquer texto que falasse de paz era à partida mal visto e pessimamente aceite por qualquer entidade pública ou particular.
Sem estar a referir a minha própria situação frente a uma entidade profissional do mais forte teor de conservadorismo, Carlos Faria fez um texto de catálogo que foi reproduzido na imprensa que era um desafio do mais explosivo que é possível admitir naquele período histórico, e que me permito reproduzir aqui na sua íntegra, sem pedir desculpa a ninguém pelo narcisismo assim evidenciado:

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